Menu

Um papo com Carlos Bernardes em Roland Garros

DSCN6310Carlos Bernardes durante partida de duplas na quadra 14 em Roland Garros (Foto: Ariana Brunello)

Ele não tem a raquete como instrumento de trabalho, mas é o principal representante do Brasil no atual circuito mundial de tênis. Em quadra usa apenas uma caneta, com a qual controla as marcações no painel eletrônico, e os olhos, atentos a todos os lances da partida.

No extenso currículo, mais de setenta países, setecentos torneios e sete mil jogos, incluindo cinco finais de Grand Slam: US Open em 2006, quando se tornou o primeiro árbitro da ATP não nascido no país de origem do torneio a dirigir uma decisão, US Open em 2008, Wimbledon em 2011 e as finais de duplas no US Open em 2010 e no Australian Open em 2012.

A tranquilidade e a simpatia de Carlos Bernardes vão além das quadras. É assim que ele atende os fãs que o abordam para tirar uma foto, enquanto caminha pelo complexo de Roland Garros. E foi assim, com a mesma educação, que ele abriu o jogo e falou sobre a vida e a carreira ao Tennis Report, após uma partida de duplas no Grand Slam francês. Um brasileiro para se espelhar e se orgulhar. Confira!

carlos bernardes infânciaCarlos Bernardes e o estilo para o tênis desde a infância (Foto: Arquivo Pessoal)

Como você descobriu o tênis?
Carlos Bernardes – Descobri o tênis assistindo as partidas pela televisão quando era criança e em São Caetano do Sul, minha cidade natal, meus amigos e eu pulávamos o muro e jogávamos nas quadras do Estádio Lauro Gomes, hoje Milton Feijão, quando tínhamos treze anos. Não havia rede e a gente colocava uns cavaletes de atletismo no meio da quadra e não tirávamos antes de ir embora. Um dia a chefe do estádio nos esperou e perguntou por que a gente não jogava normalmente como as outras pessoas, sem pular o muro e por que deixávamos os cavaletes na quadra, já que o piso era de saibro e quando chovia eles afundavam e estragavam a quadra. E nessa brincadeira de criança estou no esporte até hoje.

Quais eram seus ídolos de infância?
Carlos Bernardes – Eu adorava o Bjorn Borg, o John McEnroe e o Rod Laver. E Wimbledon foi o primeiro torneio que assisti pela TV.

E quando entrou profissionalmente para o tênis?
Carlos Bernardes – Como cresci jogando neste estádio fui convidado para dar aulas lá e esse foi meu primeiro contato profissional com o esporte. Depois de certo tempo dando aulas, houve uma Federation Cup em São Paulo, no Clube Pinheiros, e foi disputada na forma antiga. Jogavam 16 países no Grupo Mundial, durante a semana inteira. Na ocasião eles anunciaram no jornal que precisavam de 120 juizes de linha, dariam treinamento, roupas, e consegui uma vaga. Foi meu primeiro contato com a arbitragem. Daí pra frente foi um pulo pois no Brasil havia muitos torneios no final dos anos 80. Então comecei a trabalhar em Campos do Jordão, Campinas e em todo o interior de São Paulo. Além desse curso básico com aulas de posicionamento e chamadas nas bolas fiz um curso da ATP para obter o certificado profissional e os cursos da ITF para White Badge, Bronze Badge e assim recebi o Silver e o Gold Badges.

carlos bernardes inicio carreiraBernardes (à direita) no Chevrolet Classic em 1992 em Maceió/AL, no início da carreira (Foto: Arquivo Pessoal)

Qual o momento mais marcante em sua carreira até hoje? É possível escolher apenas um?
Carlos Bernardes – Difícil escolher só um. Há dois momentos muito especiais. Eu trabalho para a ATP e é difícil para alguém que não seja do próprio país que sedia um Grand Slam fazer a final desses torneios. Então, para mim, foi uma grande emoção ter trabalhado na final do US Open em 2006 entre Roger Federer e Andy Roddick, uma exceção à regra. E também em Wimbledon 2011 poder fazer a final, entre Rafael Nadal e Novak Djokovic, do primeiro torneio que assisti pela TV quando criança. Além desses, há muitos outros momentos inesquecíveis nos torneios ATP e em Copas Davis.

Por falar nisso, você tem algum torneio preferido?
Carlos Bernardes – Um não, vários. Gosto muito do Australian Open, de Roland Garros por causa de Paris, Monte Carlo é muito especial, Miami, Indian Wells, Barcelona que é bem tradicional, Tel Aviv que agora está voltando pro calendário este ano. São lugares especiais, cidades lindas e diferentes para onde o Tour sempre nos leva.

Você está sempre na arbitragem da maioria dos jogos do Rafael Nadal e em quase todos existe alguma polêmica em certos momentos das partidas. a mais famosa e engraçada até hoje foi quando o espanhol ficou muito bravo com uma marcação no ATP Finals 2010 e soltou a frase: “Me estás diciendo una barbaridad, Carlos!”. Como é sua relação com ele e com os outros tenistas do circuito?
Carlos Bernardes – Todos lembram desse episódio, mesmo! (rs). Foi um momento da partida e os juizes e jogadores sempre vão ter esse tipo de relação, não importa se é no tênis ou no futebol. Polêmicas podem existir ou não, não temos como evitar. Mas tenho uma relação boa e tranquila com todos. São muitos anos de convivência e, quanto mais você conhece a pessoa, mais fácil para conversar, discutir. Depois passa e outros jogos vêm. É normal, faz parte. Temos um grupo de juizes que trabalham nos torneios maiores e, geralmente, estão nas finais. Então coincide de fazermos a maioria dos jogos desses mesmos tenistas porque eles sempre estão nas finais e nós também.


Como você vê o tênis no Brasil hoje?
Carlos Bernardes – Estou fora do país há cinco anos, então é difícil opinar. Vivi a época de ouro, quando tínhamos 25 semanas no calendário e todos os torneios da gira latinoamericana aconteciam no Brasil: Buenos Aires, Bogotá, Acapulco e Viña del Mar eram no Guarujá, Brasília, Búzios e em outras cidades. Então a ATP passou esses torneios para outros países da América Latina. Até então nossos tenistas não precisavam viajar para pontuar e só saiam do país para disputar os Grand Slams. Hoje estamos em uma fase complicada pois há bons jogadores em países como Argentina e Colômbia e ficamos um pouco para trás pois perdemos esse “boom” do tênis. Temos bons duplistas, a Teliana está fazendo um bom trabalho, mas não é como na época do Guga, do Mattar, do Motta, do Kirmayr, quando conseguíamos dar continuidade ao trabalho. Estamos decrescendo no número de brasileiros no ranking. Temos bons treinadores, boas escolas, mas faltam a matéria-prima e organização para termos algo a longo prazo e não trabalhar pensando em 2015. Outro belo exemplo tivemos aqui esta semana: na quarta-feira havia umas dez mil crianças que aproveitaram o meio período de folga escolar para acompanhar o torneio. Se dessas dez mil, apenas quinhentas se interessarem pelo esporte, a França já terá quinhentos novos talentos que podem render bons frutos. Falta essa cultura do tênis no Brasil pois não temos uma estrutura como essa para viabilizar esse trabalho.

O Brasil é um país com uma cultura esportiva limitada ao futebol. Qual a sensação de ser uma referência, um exemplo, um orgulho e um representante do tênis brasileiro no mundo?
Carlos Bernardes – São dois senitmentos distintos. Um feliz pelo reconhecimento do trabalho não só por parte dos jogadores como também da imprensa, do público e dos fãs do esporte em geral. E um sentimento triste porque seria muito legal termos jogadores representando o país mundialmente também. Vejo aqui a torcida local quando os franceses estão em quadra. Parece torcida de futebol, muito emocionante mesmo. Poderíamos ter isso no Brasil também. Um exemplo legal é o torneio de Miami, que já não faz mais parte dos Estados Unidos há um tempo. Se tem um americano jogando com um colombiano, a quadra está cheia de colombianos. Isso aconteceria com o Brasil também se tivéssemos mais jogadores no circuito. Seria um carnaval, como foi na época do Guga. Veja o tanto de brasileiros que estão aqui, mesmo com poucos representantes do nosso país.

Por falar em torcida, os brasileiros estão cada vez mais presentes nos torneios pelo mundo e trazem esse lado passional do futebol para o tênis, muitas vezes até exagerado. Em Madrid, alguém soltou um “Vai Curintia” no meio do jogo e você chegou a comentar o episódio no Facebook. Como você vê esse comportamento?
Carlos Bernardes – Eu sou palmeirense! Se fosse um “Vai Palmeiras” estaria tudo bem (rs)! Na verdade, esse nosso lado latino é muito legal e eu sei que os jogadores adoram quando a torcida vai até um certo ponto que não atrapalha o andamento do jogo, não se manifesta em momentos errados e nem ofende um tenista, seja ele do próprio país ou o adversário. Do mesmo jeito que a torcida pode te ajudar, também pode te atrapalhar, por isso todos adoram a vibração sadia e respeitosa e acabam vibrando junto. É até melhor pro tênis. Um bom exemplo é a Copa Davis, o torneio que mais gostamos de arbitrar pois envolve a torcida, tem aquela tensão de controlar os jogadores e a euforia, e é o maior desafio para todos os árbitros pois é um competição entre países. Aqui em Roland Garros existe respeito, a torcida francesa vibra muito com seus jogadores, mas nunca chega ao ponto de atrapalhar seus adversários.

carlos bernardes brasil openCarlos Bernardes no Brasil Open, em São Paulo (Foto: Edson Lopes Jr./Terra)

Há cinco anos você vive em Bérgamo, na Itália. Como foi a recepção dos italianos pelo fato de você ser brasileiro?
Carlos Bernardes – Na Europa, em geral, me tratam muito bem. Melhor até do que eu esperava. O tênis ajuda um pouco. Há muitos negros na região onde moro, alguns brasileiros inclusive, e há problemas econômicos e de imigração na Europa, muita gente tentando entrar aqui pra fugir de guerras. Mas me tratam muito bem. Em Bérgamo até me deram o título do Tênis Clube da cidade, bato uma bolinha lá e sou convidado para entregar os trofeus nas competições que acontecem lá.

Inclusive você fez a final agora em Roma.
Carlos Bernardes – É verdade. Isso tudo é muito legal pela língua, por estar em casa. É uma honra pra mim.

Como é a rotina de trabalho e viagens? Bem parecida com a dos jogadores, não é?
Carlos Bernardes – Um pouco pior. Se o jogador perde pode ir pra casa, ter uns dias livres pra descansar. Nós, árbitros, não. Somos obrigados a ficar até o final (rs). Mas já são quase 20 anos fazendo isso, numa sequência de 25 a 30 semanas por ano, então você se acostuma a ser um cidadão do mundo. Por exemplo, eu vivo na Itália, mas não passo nem 3 meses lá. Rotina não existe, cada semana você está em um lugar, cada dia é um jogo diferente, numa quadra diferente, com jogadores diferentes, em quadras diferentes, comida diferente, idiomas diferentes. Sentimos falta de estar com os amigos e com a família. Por outro lado, não há aquela rotina do dia-dia.

Mas há uma certa rotina durante estas duas semanas aqui em Roland Garros?
Carlos Bernardes – Depende. Sabemos o horário do dia seguinte no final da noite anterior. Recebemos a programação e então sabemos se vamos fazer a primeira ou a segunda rodada do dia. Se o primeiro jogo começa às onze horas, chegamos uma hora antes para checar se há algum problema, alguma mudança na agenda. Se for o terceiro jogo, podemos chegar no horário do segundo pois pode começar ao meio-dia, ou pode ser um WO e já começar às onze e quinze ou pode ser um jogo de três horas e você vai começar às cinco da tarde. Nesta semana também estamos avaliando alguns juizes com certificados abaixo dos nossos: o Gold avalia o Silver e o Silver avalia o Bronze. Se ele está no primeiro jogo e você no terceiro, tem que chegar no horário do primeiro para ver o seu desempenho. Hoje mesmo cheguei cedo para essa avaliação. Como o Pascal María está doente, me ligaram e fiz o segundo jogo no lugar dele (Nadal x Thiem na Philippe Chatrier). A Eva Asderaki fez o meu jogo e depois fiz o dela na quadra 14. Um imprevisto que, normalmente, não acontece. Acabando o último jogo do dia, você pode ir embora, mas minha esposa Francesca também está aqui trabalhando como juiza de linha, então fico esperando por ela, jantamos aqui ou no caminho de volta ao hotel. A primeira semana é bem puxada, mas a segunda já é bem mais tranquila.

carlos bernardes e francescaCarlos Bernardes e a esposa Francesca (Foto: Arquivo Pessoal)

Quais os conselhos que você dá para quem quer trabalhar no mundo do tênis e fazer carreira como árbitro de cadeira?
Carlos Bernardes – Como teremos os Jogos Olímpicos em 2016, a organização começou a fazer alguns intercâmbios. Aqui em Roland Garros temos dois juizes brasileiros que normalmente não vão a torneios grandes e em Wimbledon teremos cinco ou seis no qualifying e na chave principal também. No total somos cinco brasileiros este ano em Roland Garros e teremos nove ou dez em Wimbledon. A dica é fazer um curso na sua federação e entrar em contato com a Confederação para começar a fazer alguns torneios pequenos no Brasil, que já vão dar uma boa experiência em quadra e saber como funciona o trabalho e como são os esquemas de rodadas e revezamentos. Se gostar e continuar, é fundamental aprender outros idiomas, o maior número possível e começar a viajar pela América Latina. Esses são os primeiros passos. É preciso aprender fluentemente o inglês primeiro pois é a língua universal. E mais de dez idiomas diferentes para a contagem dos pontos: português, inglês, espanhol, catalão, francês, italiano, alemão, russo, polonês, croata, sérvio, tcheco, uzbeque, romeno, entre outros. Não é fácil. É tão difícil quanto ser um atleta porque a concorrência é grande. Muitos tentam por muitos e muitos anos e não há espaço para todos. É preciso se dedicar, mostrar que sabe fazer e aproveitar as chances, o momento certo, o torneio certo.

Já fez as contas de quantos torneios você já trabalhou até hoje?
Carlos Bernardes – Nunca parei para contar, mas trabalhamos trinta semanas por ano em média e tenho vinte anos de carreira. Então, multiplicando trinta por vinte dariam cerca de seiscentos ou setecentos torneios desde que comecei até hoje. Jogos são dez ou mais por torneio, ou seja, cerca de sete mil. É coisa pra caramba! E cada jogo e cada torneio são diferentes. Esse é o grande barato do tênis!

carlos bernardes árbitros atpBernardes com outros árbitros na O2 Arena em Londres 2010 (Foto: Reprodução/ATP)

Agradecimentos: ATP, ITF e FFT (Federation Française de Tennis)

voltar ao topo